Profilaxia Tradutória

Renato R. Geraldes

“Quem deixa de se preparar se prepara para deixar a desejar.”

Tradução minha com a tentativa de manter o jogo de palavras de uma frase atribuída a Benjamin Franklin: “by failing to prepare, you are preparing to fail” – porque, convenhamos, “falhar em” é uma tradução lamentável para “to fail to”, mas a idiomaticidade da tradução não vem ao caso para este artigo. O assunto em pauta aqui é a preparação do intérprete para eventos médicos.

É comum acreditarem que o intérprete só precisa chegar à cabine, seja ela física ou virtual, abrir o microfone e começar a interpretar, mas nada poderia estar mais longe da verdade – pelo menos no que diz respeito a um profissional que busca ter um desempenho excelente. No mundo da interpretação simultânea, o trabalho começa muito antes do dia do evento.

De acordo com o dicionário Houaiss (2009), profilaxia é a “parte da medicina que estabelece medidas preventivas para a preservação da saúde da população”. Intitulei este artigo de Profilaxia Tradutória porque a preparação do intérprete consiste justamente na adoção de medidas preventivas cujo intuito é preservar a saúde do evento, do cliente e do próprio intérprete.

Mas, afinal, como é que o intérprete se prepara para atuar na esfera médica?

A primeira coisa que precisamos entender é o que exatamente vamos interpretar e quais as particularidades daquele trabalho. Isso porque, na área da saúde, existe uma gama de eventos: de convênio, discutindo possibilidades de redução do tempo de internação; hospitalares, abordando práticas adotadas na gestão das instituições; da indústria farmacêutica, apresentando um novo fármaco e sua ação em um contexto específico; de doença, com uma lupa voltada para determinada enfermidade e os seus tratamentos; e de sociedades médicas, abordando todo um braço da medicina, como cardiologia ou oncologia.

Suponhamos aqui, para fins de discussão, que o intérprete, após ser contratado para interpretar o Congresso Brasileiro de Fibrilação Atrial, não faça ideia de como começar a se preparar. O primeiro passo pode ser procurar no Google “fibrilação atrial”. Ao fazê-lo, nosso intérprete encontrará no topo da página o site da Pfizer Brasil, elucidando que fibrilação atrial é “um tipo de arritmia cardíaca”. A-há! Já sabemos que estamos no coração.

O passo seguinte pode ser entender as estruturas anatômicas das quais estamos falando. O que é o coração? Um órgão muscular oco localizado na cavidade torácica. Quais são as partes do coração? Átrios, ventrículos, válvula mitral, válvula tricúspide etc. Depois de um panorama geral da anatomia, é importante se familiarizar com a fisiologia, ou seja, o que é que cada coisa faz em condições normais de temperatura e pressão? O coração recebe o sangue das veias e o impulsiona para dentro das artérias.

“Certo, estou estudando a anatomia e a fisiologia, mas onde e como anotar essas informações?”. O melhor amigo do intérprete não é o cachorro (nem o gato), mas, sim, o glossário! Os meus glossários são quase dicionários bilíngues – chegam até a contar com imagens em alguns casos. Em uma coluna, costumo colocar o termo em português, com sua definição e, muitas vezes, com exemplos de frases; em outra, insiro o termo em inglês, com sua pronúncia, definição e frases de exemplo. Tudo isso me ajuda a criar o entendimento sobre o assunto e o arcabouço linguístico do qual preciso dispor para conseguir falar sobre aquele tema com naturalidade.

Ex.:

Átrio: “câmara superior que coleta sangue e o bombeia para a câmara inferior”.

(Fonte: Manual MSD)

Atrium /ˈeɪtrɪəm/ (atria, atriums): “Each of the two upper cavities of the heart from which blood is passed to the ventricles. The right atrium receives deoxygenated blood from the veins of the body, the left atrium oxygenated blood from the pulmonary vein.

‘Blood flows from the atria to the ventricles through a one-way valve.’”

(Fonte: Oxford Dictionary)

Ao ler a definição dos itens, além de adquirir um entendimento muito mais robusto do termo em si, sou exposto a um vocabulário que me pode ser útil durante a interpretação – ou porque pode surgir espontaneamente na fala do orador, ou porque pode ser uma ferramenta para que eu me expresse melhor na língua de chegada. Nessas definições, temos, por exemplo: câmara, coletar, bombear, cavity, (de)oxygenated etc.

Há mais dois elementos importantes a serem contemplados na preparação e no glossário cobertos no exemplo anterior: a primeira é a pronúncia. Sabemos que o inglês pode ser menos intuitivo em termos de pronúncia quando comparado a outras línguas – não há nada na grafia de atrium que indique com segurança que a pronúncia é /ˈeɪtrɪəm/ e não /ˈætrɪəm/ – logo, durante a elaboração do glossário, é válido colocar a transcrição fonética utilizando o Alfabeto Fonético Internacional (ou algum outro método de preferência). Assim, garantimos que seremos capazes não só de articular aquela palavra da forma correta, mas também de reconhecê-la quando a ouvirmos. A segunda questão é o plural: no inglês, muitas palavras retêm as regras de declinação do latim ou das outras línguas que as originaram. No caso de atrium, o plural é atria, podendo também ser atriums. Além desse, há vários outros exemplos: one septum, two septa; one thrombus, two thrombi; one femur, two femora (ou femurs). E vale mencionar que bacteria é o plural; o singular é bacterium, o que pode ser contraintuitivo já que, em português, o singular é bactéria.

Cobertas a anatomia e a fisiologia, o intérprete precisa passar para o estudo do distúrbio em questão: fibrilação atrial. No que consiste esse quadro? Quais as suas causas e consequências? Nesse momento, o profissional já conhece as estruturas envolvidas e tem clareza sobre as atividades que elas desempenham. Assim, fica mais fácil compreender os problemas que surgem quando essas funções não são executadas como deveriam. No estudo da doença, é essencial entender também como ela é diagnosticada: no caso da fibrilação atrial, o processo diagnóstico é feito por um ecocardiograma, eletrocardiograma, raio-X ou outro exame? Como é avaliado o avanço da doença? Quais escores são utilizados? Qual população tende a ser acometida e quais comorbidades são comuns ou particularmente perigosas? Na internet, existem vídeos didáticos excelentes que podem contribuir para a compreensão de vários desses pontos.

Por último, convém pesquisar quais são os fármacos mais utilizados e qual seu objetivo terapêutico, buscando sempre o nome comercial e o do princípio ativo. No tratamento da fibrilação atrial, além de medicamentos para o controle do ritmo e da frequência cardíaca, é comum a prescrição de anticoagulantes. A Pfizer, mencionada no começo deste texto, tem uma droga chamada Eliquis (apixabana); a Bayer tem o Xarelto (rivaroxabana); e assim por diante. É válido também procurar ensaios clínicos – sempre existem estudos comparando novas drogas, tratamentos e sua eficácia. Conhecendo as medicações, seus nomes, efeitos desejados e adversos, bem como os outros pontos apresentados aqui, o intérprete está bem munido para se situar no evento, mesmo que não tenha recebido informações específicas para aquele trabalho.

Claro que existem diversas formas, complementares ou distintas, de se preparar para eventos médicos – como ler artigos científicos dos oradores e buscar por falas deles no YouTube –, mas o espaço aqui é limitado e o intuito era apresentar uma possível abordagem para o intérprete que se depara com uma interpretação médica e precisa se armar para a batalha. Feita a profilaxia tradutória, a probabilidade de uma tradução bem-sucedida é muito maior. Ao persistirem os sintomas, o médico deverá ser consultado.

Referências:

ATRIUM. In: OXFORD English and Spanish Dictionary, Synonyms and Spanish to English Translator. [S.l.]: Lexico, c2021. Disponível em: https://www.lexico.com/definition/atrium. Acesso em: 17 jul. 2021.

FIBRILAÇÃO atrial. Pfizer Brasil, 2008-2019. Disponível em: https://www.pfizer.com.br/sua-saude/seu-coracao/fibrilacao-atrial. Acesso em: 17 jul. 2021.

GUPTA, Jessica I.; SHEA, Michael J. Biologia do coração. Manual MSD, abr. 2019. Disponível em: https://www.msdmanuals.com/pt-br/casa/dist%C3%BArbios-do-cora%C3%A7%C3%A3o-e-dos-vasos-sangu%C3%ADneos/biologia-do-cora%C3%A7%C3%A3o-e-dos-vasos-sangu%C3%ADneos/biologia-do-cora%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 17 jul. 2021.

PROFILAXIA. In: DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2009. Disponível em: https://houaiss.uol.com.br. Acesso em: 17 jul. 2021.

Renato R. Geraldes é formado em Letras – Tradutor/Intérprete pela UNIBERO e pós-graduado em Interpretação de Conferências pela Universidade Estácio de Sá. É intérprete de conferências desde 2012, tendo trabalhado como intérprete staff no GRU Airport por dois anos e depois fundado a Lingua Franca – Tradução, Interpretação e Consultoria Linguística com a sua sócia Marília Aranha. Juntos idealizaram várias iniciativas educacionais para tradutores/intérpretes, a mais conhecida sendo o curso EPIC. 

É membro da APIC e da ABRATES e entre suas principais áreas de atuação estão o âmbito da saúde, finanças, entretenimento, TI, agricultura e aviação.  Renato também tem ampla experiência com interpretação simultânea na televisão, traduzindo as entrevistas do The Noite com Danilo Gentili em parceria com a Luana Pires do We Love Translation desde 2016, bem como discursos políticos e debates presidenciais na Record News e outras emissoras

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